domingo, 26 de agosto de 2012

Frustrar-se e suportar: ensaio sobre a clínica da neurose


O lugar do gestalt terapeuta não é o de compreensão. Na verdade, o lugar do clínico é de frustrar-se do lugar de compreensão e acolher o lugar da criação. É só porque podemos aceitar e suportar o lugar do descentramento (tal como proposto pelo casal Muller-Granzotto em seu novo livro Psicose e Sofrimento com base em Merleau-Ponty), que podemos nos investir do salto em relação ao limite da neurose. O lugar da neurose, esse sim é o lugar do entendimento. A neurose, como uma construção recente da humanidade (a antropologia da neurose de PHG), é a tentativa de significar e dar nome a uma formação da segunda natureza. Por isso que o ato inibitório é também o lugar de tentar nomear uma cena que poderia justificar tal ato (por isso que a cena traumática sempre aparece no campo da fantasia).  
Assim, o que o clínico ouve não é a construção biográfica do cliente, mas sim, o lugar que o cliente quer que o terapeuta ocupe (ou seja, tal como Perls, trabalhar os aspectos manipulativos da relação). Essa é a evitação própria da neurose: ocupar o semelhante em um lugar específico, pois essa é justamente a estratégia de evitação do descentramento. Se o que eu posso assegurar de mim só se faz na intersubjetividade, eu preciso cristalizar outrem para manter a minha segurança. Aí temos o porquê da frustração como recurso clínico: ao não assumir esse lugar, estou suportando o caminho da criação.
Isso nos possibilita olhar para o campo da evitação (neurose) a partir de três premissas:
i)             Tal como PHG nos mostra, o que o cliente não consegue fazer é relaxar e não censurar. Na verdade, a situação clínica sempre pede que o cliente ataque e tente destruir o clínico. Isso porque, frente à ansiedade, o cliente só encontra duas formas de proteção: atacando o próprio corpo (discutiremos o corpo a seguir) ou o semelhante (o terapeuta). As duas formas são medidas de segurança para impedir o encontro com outrem (porém, uma ação sempre em vão).
ii)            A ansiedade é o resto que sobra de toda investida contra o corpo. Porém, apesar da pouca clareza de Goodman sobre o tema (recorrendo a Reich e a Lowen para entender a corporeidade) podemos reinterpretar o corpo como o “lugar” da natureza (animalidade) e da segunda natureza (a formação dos hábitos). Assim, a proteção é contra toda forma de excitamento que surge e que tenta deslocar o já estabelecido. Por isso, metaforicamente, a ansiedade é a “febre” do campo experiencial, ou seja, é uma forma de proteção a todo corpo estranho. O ato inibitório nada mais é que um hábito aprendido como resultado de uma necessidade inacabada. Sendo assim, o que é retido não é o conteúdo referente à experiência, mas o modo (ou o como) que a experiência foi impedida. Desta forma, o cliente aprende a defender-se de um novo jeito e aplica essa forma de defesa às relações de campo. Uma nova teoria do corpo (o aporte Merleau-Pontyano proposto pelo casal Muller-Granzotto, por exemplo) pode nos ajudar a reconstruir a dimensão corpórea da gestalt-terapia (que precisou situar-se na discussão Reicheana).
iii)           Insistimos na idéia de reler a intervenção terapêutica da clínica da neurose proposta por Perls a partir da díade Frustração e simpatia (ou suporte). Frustração é antes de qualquer coisa frustrar-se. Frustrar-se de:
a)    Se colocar no lugar compreensivo e de entendimento, como o de alguém que é capaz de abarcar o conteúdo da ambigüidade do outro. Não há lugar, na intervenção clínica da evitação, para produzir um saber sobre o cliente (ou na ótica psicanalítica – Quinet – o discurso histérico). Precisamos ressaltar que a intervenção clínica da evitação não se confunde com o tempo cronológico da sessão, ou seja, o cliente e o terapeuta podem tentar produzir um saber sobre o sintoma, mas esta não será uma intervenção no campo da evitação. O propósito da clínica gestáltica não é o da ressignificação da experiência, mas sim, o da resignação à experiência.
b)    Enquadrar o cliente em um lugar já sabido (neurótico, retroflexivo, compulsivo, etc).
c)     Também o clínico deve frustrar o lugar em que é convidado a participar pelo cliente (modelo, professor, réu, etc.)
Dessa forma, frustrar é também suportar o lugar de descentramento. Somente ao suportar esse lugar, podemos convidar o semelhante a participar dele. O cliente e o terapeuta conseguem, por meio da frustração e do suporte, se encontrar no lugar da criação e do ato (função de ego). Só assim podemos de fato alcançar o propósito da clínica gestáltica: o lugar da criação.

Um comentário:

  1. Gostei muito, atualmente estou estudando Merleau-Ponty e compreendi ainda mais, abraço Sheilly Anne

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